quinta-feira, 15 de junho de 2017

Madrugada




Ela chutou a porta, sem mais nem menos. Uma que deveria ser resistente, mas claramente não era. Abriu-se em dois tempos.

O interior era espaçoso e aconchegante, apesar de parecer abandonado. Havia uma poltrona próxima a uma estante de livros cobertos de poeira, mas provavelmente interessantes. Ao lado, dezenas de páginas contendo textos inacabados repousavam numa pequena mesa redonda. Mais adiante, uma coleção peculiar de filmes novos e discos antigos, todos precariamente organizados em gavetas. Alguns instrumentos num canto. Não havia janelas, mas os objetos dali emanavam certa luminosidade.

No geral, uma sala aparentemente desperdiçada. Ela olhou em volta sem muito entusiasmo e se sentiu ligeiramente sufocada. Talvez fosse a falta de janelas.

Ainda assim, acomodou-se na poltrona. Parecia querer ficar.

Dormiu ali por uma semana, sem acordar. Enquanto isso, a sala parecia voltar à vida. A poeira diminuiu e os objetos se reorganizaram lentamente, receosos.

É estranho lidar com rejeição. Principalmente quando não se sabe o motivo. A melancolia se desgoverna e tarda a achar a saída. A dúvida reaparece a todo instante. A memória vai perdendo os detalhes, abrindo espaço para a agonia. Emoções demais, causadas apenas pela falta de reciprocidade que até era de se esperar.

Mas não de se entender.

Acordou, levantou-se, abriu uma gaveta e encontrou uma arma. O sol nascia quando ela a apontou para a própria têmpora.

Uma súbita brisa fechou finalmente a porta. A sala ainda pulsava, novamente vazia.

segunda-feira, 29 de junho de 2015

Vingt-neuf



Naquele momento, eu queria estar apaixonado e depressivo. Combinando a vista, o vento frio e um lento suicídio, parecia apropriado pensar em alguém que não dava a mínima pra este cenário. Às vezes acho até que fui feito pra isso. Mas eu não tinha em quem pensar.

Talvez tivesse.

Me identifiquei com o céu sem estrelas, pois me senti vazio ali. Não sentia nada, ou não sabia definir o que sentia. Poucas emoções me sobraram. Deixei-as nas pessoas que passaram, e em suas respectivas músicas. Parecia ter perdido a paciência para coisas bonitas.

Voltei pra casa ao som do vento e de tristezas alheias que combinavam com as minhas. Imaginava um dueto entre mim e o banco vazio ao meu lado, cantando as mesmas dores e alegrias.

Pelo resto da noite, me fiz responsável por cuidar da presença que ocupava aquele banco vazio. Poderia ter feito melhor, se soubesse o tamanho do arrependimento que viria depois. Fui enganado por sua devoção. Traído por minha vontade. Tive todas as chances do mundo e as desperdicei. Mais uma vez deixei o passado ficar no passado.

Mas não era onde ele pertencia.

quarta-feira, 8 de abril de 2015

Sem Escalas



As paredes sentem a minha dor. Por alguns segundos, ajudam a esquecer. Me escapam reflexos de frustração, como uma resposta aos erros que tanto demorei pra perceber. Tarde demais pra consertar.

Ando golpeando minhas ideias. Derrubei meus planos antes tão fixos com uma facilidade assustadora. Voar sozinho parecia possível. Parecia perfeito. Mas as lembranças atacaram violentamente, com duros golpes de realidade.

Todos precisam de um co-piloto.

Os dias estão longos demais. A espera me consome. Busco conforto nas músicas, tantas a dedicar. As que fiz não devem agradar tanto quanto as que fizeram. Depositei nelas, inocente, a esperança de que consertariam aqueles erros.

Era tarde demais. As notas caíram aos meus pés, como um espelho quebrado. Refletiam traços de angústia por uma certeza rompida. Eu não era mais aquele porto seguro. Nunca mereci o título. Fui uma ilusão, até para mim mesmo.

Mas vou me reconstruir e aguardar o seu retorno.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Autossuficiência




Me pergunto se você está sendo forte. Se está se controlando. Ainda me preocupo, e sou incapaz de controlar minhas palavras. Não veja minhas palavras.

Está mantendo distância?

Deveria.

Não tenha esperanças. Sei que você diz não ter, mas não sei se acredito. Esperar é perigoso. Mas te entendo. Tenho dúvidas às vezes.

Não tenha esperanças.

Ando vazio, mesmo com tudo isso à minha volta. Simplesmente não parece ser o suficiente. E não é fácil transformar o vazio em algo como arte, mas preciso aprender. Ver algo onde não há nada. Escrever sobre a falta de escrita. Cantar sobre a ausência.

Quero arrancar poesias de um buraco negro.

Eliminar então aquelas dúvidas, e aprender a viver comigo. Não posso fugir de mim.

Mas você pode.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Voltas



Vez ou outra, reencontro pessoas que pensei já terem sido engolidas pelo passado. Colocado em circunstâncias onde a interação com elas é possível às vezes, inevitável ,  penso em como o mundo realmente dá voltas.

Mas ainda não deu a volta que eu queria. Pessoas que não esqueci, ou com quem acredito ter assuntos inacabados, e gostaria de reencontrá-las. Dizer aquelas frases perfeitas que nunca vêm à mente no momento certo, e terminar tudo à minha maneira ou ganhar uma nova chance. Ou simplesmente retomar uma amizade. 

Relembro as histórias, tanto as boas quanto as ruins, todas inesquecíveis. Não se trata de viver no passado, mas de trazê-lo comigo quando convém. Quero descobrir como anda o presente daquele passado, e se esse presente ainda se lembra do passado como eu me lembro. Se teve a mesma importância.

Tenho uma certa necessidade de ser lembrado.

Certas coisas não merecem o completo esquecimento. Certas coisas são valiosas, mudam visões, mudam pensamentos, e deixá-las pra trás não vale a pena. Mas às vezes, uma volta vazia do mundo era o que faltava para perpetuar uma experiência, uma fase, uma pessoa.

Ou perpetuar o próprio vazio.

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

A Caixa Negra



Não se sabe se era neste ou em outro plano. Sabe-se que havia aquela caixa negra, estreita e sem fim, tida como uma prisão sobrenatural.

Uma prisão para a mente.

Foi onde ele acordou, se é que dormia, e não precisou abrir os olhos para saber onde estava. Encontrava-se de pé e incapaz de movimentar-se. As paredes negras e frias quase coladas ao corpo transmitiam a agoniante sensação de sufocamento. Até o silêncio era enlouquecedor, ao permitir que sua mente gritasse desesperadamente, tentando controlar o caos. Sabia que não havia saída e aceitava esse fato. 

Só não aceitava os motivos.

Não havia espaço para alucinações. Fora subitamente condenado a uma realidade eternamente sufocante e lucidamente insana. E por alguma razão, era incapaz de perder os sentidos. Buscou sua vida nas memórias mas não viu nada. Era como se nunca tivesse existido, ou sempre fizera parte daquela caixa escura, infinita e imóvel. Existindo sozinho onde nem mesmo o tempo o acompanhava, ainda tentou definir o que sentia, uma emoção qualquer. Já não sabia mais se tinha os olhos abertos ou fechados na escuridão absoluta.

Só lhe restava pensar. Teve tempo de desvendar mistérios sozinho; acreditava até mesmo ter descoberto como havia parado ali. As imagens pareciam cada vez mais reais, como se criasse outra realidade.

E criou. Caminhou pelo seu passado antes obscuro, e agora palpável. Tornou-se um espectador de sua própria vida, revendo cada momento nitidamente. Sentindo tudo outra vez. Emoções frias de uma vida vazia. Sentiu sono, como num filme ruim. Sentiu pena. Era tudo tão descartável. Viu-se escravo do tempo e do dinheiro. Viu a morte e as três pessoas que a lamentaram. Viu as palavras na lápide.

Um espectador da própria vida.

domingo, 14 de setembro de 2014

A Arte da Conquista



George era diferente. Autêntico, digamos, mas não era visto assim. Evidente que os populares da escola o achavam estranho, mas por que se importar. Sua mãe e seu padrasto tentaram de tudo para "consertá-lo", em vez de aprenderem algo com ele. Eu, particularmente, me identifiquei com George mais que com qualquer outra pessoa. Ele parecia contar a minha história, mas eu estava longe da sua realidade.

Era mestre em ignorar as tarefas acadêmicas, alegando que tinha coisas mais importantes a fazer com seu tempo. Sinceramente, não sei como alguém pode discordar. Desenhava nos livros de trigonometria, tornando-os infinitamente mais interessantes. Raramente matava aulas, para que fazê-lo nunca perdesse a graça.

Pessoas comuns têm medo de doenças, dor, morte. George tinha medo da vida. Não era suicida, só temia vê-la passar enterrado em trabalho e relações vazias. Ao matar aulas, nunca ia ao mesmo lugar. Buscava experiências que o agregassem cultura, para fazer valer aquele tempo. Observava a cidade sentindo-se uma peça longe do tabuleiro.

Não por opção - era apenas um fato.

Um dia, George conheceu Sally no terraço da escola. Era uma das populares, mas nunca pediu por essa classificação. Ela agradeceu o cigarro e ele a acompanhou até sua casa. Não sei você, mas eu sei onde essa história termina. Ele não sabia, mas sentiu que devia evitar. Tentou, mas falhou. Claro que falhou.

Ele queria começar a pintar quadros, mas sempre que achava que sabia o que pintar, logo vinha o sentimento de que não estaria expressando nada verdadeiro. Tentando ser alguém que não era. E desistia, por ser incapaz de transformar mentiras em arte. Precisava antes encontrar sentido no seu caos interior. Encontrar algo a dizer.

Conheceu um pintor, e achou que era a única pessoa legal que conhecera na vida. Dustin dizia que a dificuldade de saber o que pintar era um bom sinal. Que cada pintura era um processo de morte e renascimento. Disse também que se George ainda não gostasse de Sally, deveria.

George nunca se sentiu superior. Na verdade, sentia que não era ninguém. Sally mudou isso com o tempo, sem saber. Ele passou a ter companhia na mesa do refeitório. Passou a tentar dedicar-se aos estudos.

Até que ela o convidou para uma festa.

Uma aventura necessária aos desviantes, ao menos uma vez. Esquecer a misantropia e arriscar um avanço naquele romance tão claramente impossível. George contava com Sally para ser seu centro de gravidade e ajudá-lo a aturar os figurantes.

Eu nunca vim num lugar desses, ele dizia. Não acreditei nem por um segundo quando ela lhe disse para não se preocupar e prometeu não perdê-lo de vista. Ah, eu entendo dessas coisas. Diferente de Sally, George não foi feito pra dançar. Tentou um pouco, mas logo foi substituído.

Aquela miserável traidora e sádica.

Dizia a todos que eram só amigos. Mas este, Sally, é justamente o problema — responderam. Não escapou aos olhos de ninguém os olhares que George direcionava a ela. E ela tentava convencer a si mesma de que não se tornaria a sua mãe, brincando com emoções diariamente.

Ao menos ela o levou pra casa, depois que ele vomitou e desmaiou na calçada.

Saíram juntos no Dia dos Namorados. Ele detestava aquela palhaçada consumista. Além de estar se sentindo apenas o mais novo dos vários desmiolados que se sentaram frente à Sally naquela data. Não demorou até ela começar a fazer perguntas constrangedoras, e eu me perguntava por que ele não se levantava e ia embora. Na medida que Sally falava "você é meu único amigo de verdade, odiaria estragar isso", pude ver as facas saindo de sua boca e atingindo o peito de George. Aquela miserável traidora e sádica.

Enfim, ele foi embora. Não atendia nem retornava as ligações de Sally, o que eu acreditava ser bastante inverossímil. Ou George era mais esperto que eu, no fim das contas. Prendeu-se à cama e perdeu a força que havia conseguido para dedicar-se aos estudos.

Quando finalmente a reencontrou, beijou-a. Ela esperou uns segundos antes de afastá-lo e abrir a porta. Dustin não pediu desculpas porque sabia o quanto isso seria patético. George olhou para Sally e virou as costas.

Aquela miserável traidora e sádica.

Ele resolveu estudar, como forma de distração. Seu professor de artes esperava uma pintura que gritasse "George" pela sala. Que viesse de dentro. Que fosse verdadeira. E ele começou.

Me orgulhei de George como acho que nunca vou me orgulhar de mim mesmo. Logo quando achei que ele fosse apenas um espelho. Finalmente uniu a motivação ao seu talento. Teve a coragem que eu nunca tive.

Sally disse que precisava vê-lo. Precisava de um amigo. Ele concordou, relutante. Pude sentir seu rosto queimar quando ela disse que iria para a Europa com Dustin. Sua voz mal saiu ao dizer que a amava. Senti sua mão queimar quando ela a tocou. E não a soltou enquanto caminhavam.

A dor diminuiu devagar. George percebeu que o injusto era ele, por não ter dito que a amava antes. "Aquela miserável traidora e sádica". Ambos sabiam que ficariam juntos um dia. Quando resolvessem seus problemas, principalmente os internos.

"Eu também te amo".

George entregou suas tarefas atrasadas. Sua pintura gritava seu nome. Expressava uma verdade simples. O diretor chamou seu nome na formatura. "Tudo é possível". É estranho perceber que clichês como esse às vezes se encaixam na vida de pessoas tão longe do normal.

Sally não conseguiu passar do portão de embarque. Encontrou George na sala de artes, encarando a própria pintura. Postou-se ao seu lado e olhou para si mesma. Nada mal, ela disse.

Nada mal.



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Inspirado no filme The Art of Getting By.

domingo, 24 de agosto de 2014

Drama




Pra onde foram os amores impossíveis, as esperas angustiantes, as saídas dramáticas? É estranho sentir saudades daquele leve sofrimento jovem. Ver o sol nascer sem perceber que a noite se perdeu entre cenários perfeitos, imaginados por um coração partido. E saber, então, que viriam muitas outras noites assim.

Pra onde foram os momentos constrangedores, os olhares carregados e as caminhadas solitárias? Tudo envolto em um desejo egocêntrico de poder produzir uma fotografia que representasse tantas emoções juntas. Que mostrasse a casa vazia, a música triste, o único lugar ocupado na mesa. Poderíamos ver as injustiças caídas sobre alguém que não tinha nada além de boas intenções.

A conquista morreu nas mãos daqueles que cansaram de procurá-la. Ela própria havia se cansado de esperar. Sumiram as decepções, os encontros, as palavras profundas. As lágrimas secaram e tudo ficou cada vez mais raso.

Talvez seja a idade. A falta de tempo para o drama. Ele vive somente nas músicas, nos filmes e nos livros, pois ninguém mais tem espaço para vivê-lo. As preocupações são outras, embora ninguém perceba que são infinitamente menos relevantes.

Talvez não. Talvez seja só a visão distorcida de um coração amargurado.